O correto uso
do papel higiênico
por João
Ubaldo Ribeiro*
João Ubaldo
Ribeiro era colunista do jornal O Globo/Foto: Divulgação
O
título acima é meio enganoso, porque não posso considerar-me uma autoridade no
uso de papel higiênico, nem o leitor encontrará aqui alguma dica imperdível
sobre o assunto. Mas é que estive pensando nos tempos que vivemos e me ocorreu
que, dentro em breve, por iniciativa do Executivo ou de algum legislador,
podemos esperar que sejam baixadas normas para, em banheiros públicos ou
domésticos, ter certeza de que estamos levando em conta não só o que é melhor
para nós como para a coletividade e o ambiente. Por exemplo, imagino que a
escolha da posição do rolo do papel higiênico pode ser regulamentada, depois
que um estudo científico comprovar que, se a saída do papel for pelo lado de
cima, haverá um desperdício geral de 3.28 por cento, com a consequência de que
mais lixo será gerado e mais árvores serão derrubadas para fazer mais papel. E
a maneira certa de passar o papel higiênico também precisa ter suas regras,
notadamente no caso das damas, segundo aprendi outro dia, num programa de tevê.
Tudo
simples, como em todas as medidas que agora vivem tomando, para nos proteger
dos muitos perigos que nos rondam, inclusive nossos próprios hábitos e
preferências pessoais. Nos banheiros públicos, como os de aeroportos e
rodoviárias, instalarão câmeras de monitoramento, com aplicação de multas
imediatas aos infratores. Nos banheiros domésticos, enquanto não passa no
Congresso um projeto obrigando todo mundo a instalar uma câmera por banheiro,
as recém-criadas Brigadas Sanitárias (milhares de novos empregos em todo o
Brasil) farão uma fiscalização por escolha aleatória. Nos casos de reincidência
em delitos como esfregada ilegal, colocação imprópria do rolo e usos não
autorizados, tais como assoar o nariz ou enrolar um pedacinho para limpar o
ouvido, os culpados serão encaminhados para um curso de educação sanitária.
Nova reincidência, aí, paciência, só cadeia mesmo.
Agora
me contam que, não sei se em algum estado ou no país todo, estão planejando
proibir que os fabricantes de gulodices para crianças ofereçam brinquedinhos de
brinde, porque isso estimula o consumo de várias substâncias pouco sadias e
pode levar a obesidade, diabetes e muitos outros males. Justíssimo, mas vejo um
defeito. Por que os brasileiros adultos ficam excluídos dessa proteção? O certo
será, para quem, insensata e desorientadamente, quiser comprar e consumir
alimentos industrializados, apresentar atestado médico do SUS, comprovando que
não se trata de diabético ou hipertenso e não tem taxas de colesterol altas. O
mesmo aconteceria com restaurantes, botecos e similares. Depois de algum
debate, em que alguns radicais terão proposto o Cardápio Único Nacional, a lei
estabelecerá que, em todos os menus, constem, em letras vermelhas e destacadas,
as necessárias advertências quanto a possíveis efeitos deletérios dos
ingredientes, bem como fotos coloridas de gente passando mal, depois de
exagerar em comidas excessivamente calóricas ou bebidas indigestas. O que nós
fazemos nesse terreno é um absurdo e, se o estado não nos tomar providências,
não sei onde vamos parar.
Ainda
é cedo para avaliar a chamada lei da palmada, mas tenho certeza de que,
protegendo as nossas crianças, ela se tornará um exemplo para o mundo. Pelo que
eu sei, se o pai der umas palmadas no filho, pode ser denunciado à polícia e
até preso. Mas, antes disso, é intimado a fazer uma consulta ou tratamento
psicológico. Se, ainda assim, persistir em seu comportamento delituoso, não só
vai preso mesmo, como a criança é entregue aos cuidados de uma instituição que
cuidará dela exemplarmente, livre de um pai cruel e de uma mãe cúmplice. Pai na
cadeia e mãe proibida de vê-la, educada por profissionais especializados e
dedicados, a criança crescerá para tornar-se um cidadão modelo. E a lei certamente
se aperfeiçoará com a prática, tornando-se mais abrangente. Para citar uma
circunstância em que o aperfeiçoamento é indispensável, lembremos que a tortura
física, seja lá em que hedionda forma — chinelada, cascudo, beliscão, puxão de
orelha, quiçá um piparote —, muitas vezes não é tão séria quanto a tortura
psicológica. Que terríveis sensações não terá a criança, ao ver o pai de cara
amarrada ou irritado? E os pais discutindo e até brigando? O egoísmo dos pais,
prejudicando a criança dessa maneira desumana, tem que ser coibido, nada de
aborrecimentos ou brigas em casa, a criança não tem nada a ver com os problemas
dos adultos, polícia neles.
Sei
que esta descrição do funcionamento da lei da palmada é exagerada, e o que
inventei aí não deve ocorrer na prática. Mas é seu resultado lógico e faz parte
do espírito desmiolado, arrogante, pretensioso, inconsequente, desrespeitoso,
irresponsável e ignorante com que esse tipo de coisa vem prosperando entre nós,
com gente estabelecendo regras para o que nos permitem ver nos balcões das
farmácias, policiando o que dizemos em voz alta ou publicamos e podendo punir
até uma risada que alguém considere hostil ou desrespeitosa para com alguma
categoria social. Não parece estar longe o dia em que a maioria das piadas será
clandestina e quem contar piadas vai virar uma espécie de conspirador, reunido
com amigos pelos cantos e suspeitando de estranhos. Temos que ser protegidos
até da leitura desavisada de livros. Cada livro será acompanhado de um texto
especial, uma espécie de bula, que dirá do que devemos gostar e do que devemos
discordar e como o livro deverá ser comentado na perspectiva adequada, para não
mencionar as ocasiões em que precisará ser reescrito, a fim de garantir o
indispensável acesso de pessoas de vocabulário neandertaloide. Por enquanto,
não baixaram normas para os relacionamentos sexuais, mas é prudente verificar
se o que vocês andam aprontando está correto e não resultará na cassação de
seus direitos de cama, precatem-se.
*João Ubaldo
Ribeiro
(1941 – 2014) era escritor, jornalista e imortal da Academia Brasileira de
Letras
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