terça-feira, 5 de janeiro de 2016

CRÔNICA - O ROSTO E AS HORAS - SAULO MENDONÇA

Poeta alagoagrandense Saulo Mendonça


                           "O ROSTO E AS HORAS"

  Baraúna!... Assim era considerado por alguns conhecedores da longevidade de certas árvores de nossa flora brasileira. Com base na vitalidade da baraúna, muitos se referiam à força de viver de meu pai. O seu vigor, tal qual a árvore nordestina da família das “Brauna Schott”, era a própria longevidade - ainda hoje - conhecida pela sua resistência ao tempo e à vida.

                                Aos noventa e nove anos e sete meses de idade, foi morar no andar lá de cima. Passou-se! Certa vez tomei conhecimento de que ele havia sido registrado um ano depois de seu nascimento. Isto veio me confirmar que ele ultrapassou as barreiras dos cem anos de idade.

                            Como filho, interponho-me ao seu passado, abastecido de lembranças muitas, porque a sua história é o meu maior orgulho e eu o vejo através do seu espírito que ainda sobrevive sem separatismos nem distâncias.

                                   Pelas ruas, ainda escuras do dia amanhecente, na cidade de Alagoa Grande, sinto-o caminhar até a padaria de Seu Mariano, na Rua do Livramento. Lá ficava proseando com os padeiros e com quem mais chegasse, enquanto o forno aprontava os pães que levaria para casa numa mochila branca. Se eu pudesse, tê-la-ia ao meu alcance - essa mochila - para poder – mais ainda, guardar nela todo o fermento de sua vida inolvidável. 

                                   A sua loja comercial, “A Sempre Viva”, tinha um referencial de qualidade pela diversidade das mercadorias. O preço era o mais baixo da cidade. Isto para ele era uma honra, mas não se desgrudava do seu senso de humor. Quando os fregueses lhe pediam algo sem especificar direito a mercadoria, tinha sempre uma resposta na ponta da língua, à exemplo de:         
                  
                                   - “Seu Jorge, um quilo de prego”...
                                   Ele olhava para o freguês sem piscar os olhos.
                                   - “Seu Jorge, quero um quilo de prego!!”.
                                 - “Ainda não me disse nada”, respondia o meu pai em tom de leve austeridade. Quando o freguês entendia que o meu pai precisava ouvir uma coisa mais precisa, completa, aí, então, ele falava.
                            - “Seu Jorge, eu quero um quilo de prego de duas polegadas!!!
                          Depois da tempestade vinha a bonança:
                         - “Ah! Agora você falou, seu Cipó!”
                          
                                   Um dia desses – vai longe o tempo - precisou fazer um pedido de uma mercadoria a um fabricante da cidade de São Paulo. A mercadoria chegou à Estação Ferroviária de Alagoa Grande em tempo hábil e intacta, porém, depois de conferida, foi notado que tinha vindo algumas unidades a mais. Não deu outra. Imediatamente enviou uma carta para São Paulo e, em pouco tempo, estavam sendo devolvidas as unidades que ultrapassaram o pedido. Era um homem honesto de “nascença” como diria o homem simples do campo. 

                                   Esse homem probo, translúcido, carrancudo e brincalhão, consumia as suas horas num ritmo de mestria e sapiência, homem que não nasceu para figurar nas grandes colunas sociais, mas que sabia olhar para o mundo ao seu redor, enfeitado de filhos, netos, bisnetos, noras, genros e a mulher que amava e era companheira de todos os seus passos, a quem ele chamava de Mendonça. 

                                   Minha mãe, a terceira esposa de meu pai (viúvo duas vezes), casada legitimamente, já havia se acostumado com as tiradas de meu pai. Todo fim de ano ele recebia uma porção de calendários enviados pelos seus fornecedores. Naquele tempo, chamávamos de folhinha ou cromo. Ao abrir o cromo, o maior do pacote, lá estava em pé uma mulher bonita vestida de maiô, escorada num coqueiro de praia. Exuberância e sensualidade dos idos tempos. Ele olhava dos pés à cabeça e, ainda com os olhos metidos naquela estampa, esboçava em tom decisivo e brincalhão: “Mendonça hoje me paga!!” E ria copiosamente.

                                   Na sua loja, quando entrava uma criança acompanhada do pai ou da mãe, dependendo do movimento do balcão, logo ganhava dele uma graça. Tirava de dentro do cofre um palhacinho de pano uma espécie de luva que, ao vesti-lo na mão, a sua cabeça oca de porcelana entrava no dedo do meio, enquanto os outros dedos faziam os movimentos das mãos. Com olhos atentos, os meninos assistiam àquilo e logo se contaminavam a sentir uma alegria sem par. O momento lhe enchia de prazer e satisfação. Era como se o apurado do dia não significasse nada se não houvesse esse tipo de animação apurando-lhe a vida, para somar ao peito o sorriso daquelas crianças. Era o comerciante e o comediante, juntos, em suas horas de descontração vendendo o dia em retalhos e à varejo. 

                                  À tardinha, já anoitecendo, chegava em casa e, logo após o jantar e um cochilo preliminar numa espreguiçadeira da sala, deitava-se na rede que o esperava em seu quarto. Ali os seus cochilos faziam o balanço do dia. O abajur do seu quarto era um candeeiro a querosene que lhe servia de bálsamo para atenuar o seu cansaço. Era a sua meia-luz invadindo todo o quarto com seu cheiro dolente de combustível que - lentamente - o levava ao dia seguinte.

                                 Na mesa, onde sempre nos encontrávamos, eu o ladeava para assistir à sua refeição. Geralmente degustava peixe trazido da Parahyba (hoje João Pessoa). Foi naquela mesa onde me ensinou a comer quiabo e a receber com um gosto depurado a atenção que me servia e ofertava. Para mim era um atrativo imperdível vê-lo almoçar com prazer e admirável serenidade. Não somente a sua refeição, mas trazia em si a fascinante qualidade ligada a tudo que se propunha fazer. Eu gostava de observá-lo. Tinha a mania de lê-lo. É na condição de menino que a gente, antes de aprender a soletrar palavras, aprende a ler no rosto do pai todas as suas horas.  

                                Alguns poucos o viam como anti-social, hermético ou carrancudo. Era o seu jeito rijo, talvez quando vestia um paletó e colocava uma gravata no peito, um bom chapéu de massa que lhe dava cobertura, quando empunhava uma pequena maleta que levava em suas viagens de trem até a capital. Fazia compras em grosso, com traje meio turco, podia assustar a todos, menos a mim. Ele gostava de viajar, de estar sempre atualizado com as histórias do mundo, cultuava ouvir piadas curtas, brincar com crianças e sabia sorrir ou gargalhar nas horas que o tempo lhe permitia. 

                                Uma jocosa referência fazia o político, autodidata e tribuno Josué da Silveira, ao se referir ao comportamento de meu pai: “Jorge gosta mesmo é de fazer menino e descascar cana.” Éramos muitos! Mas, além de descascar a cana-de-açúcar, gostava também de distribuí-la. Repartia com visível doçura, os roletes de cana com os filhos, quase todos do mesmo tamanho e da mesma idade. Ainda sobrava tempo para dar atenção ao seu gato “Manhoso”, um angorá de estimação, presente de Lena, minha mulher, no dia de seu aniversário. No balanço morno de sua rede, raro não se via “Manhoso” estirado sobre o seu colo, dormindo, engalanado sob sua mão. 

                               No inverno, o tempo frio nos obrigava a dormir mais cedo. Ninguém saía de casa, recolhíamos à boquinha da noite. Da lagoa, que ficava por trás de minha casa, vinha o som dos assobios das pererecas e o coaxar dos sapos entrando pelas frestas do telhado da casa e compondo uma cantiga saudosa que se completava com o ritmo dos pingos desgarrados das goteiras do telhado. Eles irrompiam dentro do silêncio o som das bacias e penicos que aparavam a água daquela chuva dentro de casa, mais tarde entrecortada pelo tic-tac quase silente do seu relógio de parede. 

                               Foi naquele tempo que aprendi que as horas não se perdem à toa. As árvores também não. Muitas já nasceram e cresceram por aqui. Outro dia ouvi uma queixa de um filho da cidade de Lagoa Nova, terra natal de minha mãe. Ele recordava o grande Pirauá, o qual tive a felicidade de conhecer. Era uma árvore centenária com mais de trinta metros de altura. Corpo esguio, discretamente sensual, fazia bailados no vento e era vista de qualquer ponto da cidade. Foi extinta pela insensibilidade humana. A mão brutal e rude do homem cortou a sua dança, feriu a sua terra que não tem mais ninguém que possa voltar os olhos para o céu de sua vida, senão pelos olhos da lembrança, da imaginação. 

                              Lembro-me, mais uma vez, do frondoso Tamarindo do cais da lagoa de minha terra natal! Fui contra a sua derrubada, ou melhor, senti repúdio daquele crime hediondo e premeditado, pelo qual já chorei as suas mágoas há alguns anos. 

                             Recentemente, foi o caso da Gameleira do Roger que, segundo Flávio Dias e Graça Coutinho, já fez sombras a muitas histórias e a tantas reminiscências. Caiu com a chuva. Com ela desabou uma parte dignificante do Bairro, ficaram apenas os versos de Pedro Coutinho e de tantos outros poetas, aguando as suas lembranças. 

                            Do meu pai, ficou muito mais que isso! Considerado “Baraúna”, transcendem as marcas de sua integridade, um cheiro ativo de perpetuidade, refletido no privilégio de ainda tê-lo aqui. Tenho-o, ainda, porque é árvore que resiste ao tempo, aliás resiste a tudo e dá sombra até mesmo quando não estou exposto ao agasalho de suas frondes.

SAULO MENDONÇA

(Do livro "O Rosto e as Horas" - Ano 2000) 

Recebida e Editada por Severino Antonio (bibiu do jatobá) do próprio autor (Saulo Mendonça) em 05/01/2016.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário